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Ellipse Eclipse Apocalypse

Love to Unterstand

by Ulisses Carrilho

Este ensaio, muito embora leve o verbo entender em seu título, não está preocupado em facilitar o processo de compreensão dos trabalhos que compõem o corpo da obra de Marcia Ribeiro, que baila entre a pintura, o desenho e a instalação. Muito antes pelo contrário: trata-se de especular razões possíveis pelas quais a artista, que não costuma operar por meio da linguagem escrita na sua produção artística, elegeu três substantivos para neste espaço-tempo emprestar um nome tripartido ao conjunto de trabalhos apresentados. Uma forma, a elipse, metaforiza as trajetórias realizadas em vários sistemas físicos naturais que possuem um centro de força central, como a Terra e demais planetas em torno do Sol; um evento astronômico – eclipse; uma alusão ao juízo final – apocalipse. Palavras não dão conta da intensidade de tudo aquilo que é sentido pelo corpo, mas poetas, oráculos, xamãs e demais forças desconhecidas que operam neste mundo nos ensinam que ainda assim podemos tentar.Dentre as figuras de linguagem da língua portuguesa, é a elipse que opera omitindo um termo de determinado enunciado. Uma subtração: operação que confia na síntese, no apagamento. Nas pinturas realizadas por Marcia, frente à pincelada, a rasura apresenta-se como importante coadjuvante. Se a história da arteinsiste em categorizar as pinturas, figurativas ou abstratas, relembrando-nos que se trata de acúmulo de tinta sobre tela, artistas interessados em agir desde este meio dificultam tais determinismos ao operar criticamente sobre a tradição. O repetido aforismo do pintor e professor de pintura Maurice Denis (1870 - 1943) anuncia que “é preciso lembrar que um quadro, antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou uma anedota qualquer, é essencialmente uma superfície plana recoberta de cores reunidas numa certa ordem”. Em Marcia Ribeiro, por meio da raspagem, da retirada das camadas de tinta sobre a tela, somos nós, espectadores, públicos, videntes, convocados à arqueologia da própria pintura para lhe carregar sentido. Por meio da retirada de camadas de tinta, percebemos um passado que se faz presente, cuja totalidade nos escapa – como a própria vida. No entanto, sabendo que toda palavra é um código prestes a receber novos sentidos, podemos também perceber que a primeira dessas palavras é justamente aquela que dá nome a uma forma, a elipse. Mas também ao movimento da trajetória de um ponto – como toda e qualquer linha já produzida, por artistas ou não, e descrita pela física. Elipses abundam nos movimentos que regem o Espaço e, não à toa, regem a organização do tempo. É a duração do movimento da Terra em torno do Sol, elíptico, que marca aquilo que denominamos ano. Em tinta acrílica, guache, bastão oleoso ou lidando diretamente com pigmentos, percebemos um corpo de trabalhos que ora parecem ser um gozo liberado de experimentação da forma, ora parecem ter o ímpeto de revelar o que a ciência ainda não conseguiu desvelar. Como espécies de mirações ou visões alucinógenas, percebemos uma psicodelia da forma que não obedece à rigidez dos projetos concretos e neoconcretos, tão importantes para a arte brasileira, mas ainda assim percebemos uma vontade geométrica nas composições estruturadas pela artista. Ao mirar suas pinturas, reconhecemos enigmas que demandam tempo do espectador: desobedecem à rapidez da ordem do dia, parecem esgarçar o tempo, convidar a uma vagareza. Tal demora, própria da reflexão, poderia levar-nos a viajar no tempo e especular um regime de concomitâncias, de associações livres de respaldo ou fixidez: em Hilma af Klint (1862-1944), pintora sueca que experimentou o abstracionismo antes mesmo de Kandinsky ou Mondrian, também percebemos uma representação física, em tela, daquilo que não é visível. A tinta relembra que a matéria, por meio do gesto, não opera apenas naquilo que é concreto ou apreensível, por meio do que já foi elucidado. Ganha um quê espiritual – própria não apenas dos alfarrábios da história da arte, mas também possível de ser pareada à arte contemporânea brasileira produzida por artistas indígenas, como as pinturas de Daiara Tukano, que operam nesta tradição que expande as possibilidades da arte.Ao sobrepor camadas de tinta e formas que equilibram-se e irrompem nas pinturas retangulares produzidas pela artista, poderíamos perceber uma alusão ao eclipse. Tal evento astronômico agora servirá para aludir às várias camadas do tempo: por quais motivos, desde a Terra, a artista aludiria ao movimento de corpos celestes e galáxias outras? Sem termos algum tipo de certeza sobre esta resposta – talvez nem a própria artista as tenha ou prefira guardar em segredo, como o mistério religioso – cabe ao crítico que recusa-se a entender mais uma vez imaginar. Sob a rígida Ditadura Militar (1964-1985), brasileiros assistiram, em 1969, à chegada de seres humanos à Lua, em pleno AI-5, que institucionalizou a perseguição política aos seus opositores e autorizou uma série de medidas de exceção. Entre elas, o fechamento do Congresso Nacional, a intervenção emestados e municípios e a suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão. Frente à rigidez da norma, cabe ao artista ainda assim criar. Foi no ano de 1970 que a artista brasileira Anna Bella Geiger desenvolveu as primeiras serigrafias da sua Fase Lunar, a partir do cruzamento das técnicas de serigrafia em cor e fotosserigrafia, a partir de imagens conseguidas pessoalmente pela artista na Embaixada Americana. A potência destas imagens acompanhou a investigação artística de Geiger. Percebemos além da superfície lunar, outras imagens produzidas pela Nasa. Na folha de contato, as fotos rejeitadas para futura ampliação ganhavam um xis – também uma rasura – e provocaram a inclusão de tal código em trabalhos dos próximos anos, como em “Aqui é o centro”, de 1973. Em sua produção artística, repleta de mapas e representações de geografias físicas e humanas, a artista mira a imensidão do céu. Fazer do impalpável, do inimaginável e do impossível o seu chão, operação que confia na opacidade da arte, para aquela que, sem garantia de sua liberdade de expressão, insiste em criar. Garantida pela Constituição, a liberdade de expressão está ligada ao direito de manifestação do pensamento, possibilidade do indivíduo emitir suas opiniões e idéias ou expressar atividades intelectuais, artísticas e científicas, sem interferência ou retaliação do governo. Tal fantasma histórico, todavia, mostra-nos que mesmo para aqueles que confiam na linearidade do tempo, o passado insiste em se fazer presente. Mirar aquilo que paira sobre nós renova suas possibilidades políticas quando, na atualidade, o governante do país discursa sem máscara em ato pró-intervenção militar em frente ao quartel general de Brasília, em meio à aglomeração que clamava pela volta do mesmo Ato Institucional durante a maior crise pandêmica do planeta. Se confiamos que as palavras carregam consigo mais de um sentido, não poderíamos deixar de desconfiar na potência política das imagens.Chegamos ao apocalipse anunciado pelo terceiro termo eleito por Marcia Ribeiro. São também três as bandeiras hasteadas pela artista para os visitante do Parque do Carmo. Em tempos de incerteza, os mastros anunciam que é preciso reinventar códigos e operar por meio dos símbolos. A ocupação “Elipse, Eclipse, Apocalipse” desfraldará três bandeiras com as palavras “Galáxia’, “Universo” e “Planeta”. A substituição operada pela artista, da ordem conceitual, por si já poderia fazer rima ao título do paradigmático “Anywhere is My Land”, pintura de Antonio Dias, produzida no ferrenho ano de 1968. Ao salpicar tinta branca sobre a superfície de uma tela pintada de preto, o artista produziu uma miríade de pontos desordenados, sem tamanho uniforme. Sobrepõe a esta desritmada composição uma malha, também em tinta branca, que organiza a superfície da tela como as malhas que aferem a escala em mapas geográficos. Apesar de trabalhar por meio da pintura, da serigrafia e da instalação, a citação direta ao trabalho de Dias retoma uma operação conceitual de uma artista que parece querer estar impregnada ao seu tempo, muito embora não esteja usando de códigos que manifestamente a liguem ao espaço. Tal energia subversiva parece mais uma vez aludir à temperatura febril de um Brasil ferido. Tal escrutínio das imagens, palavras, símbolos e códigos presentes nesta mostra, no entanto, podem dizer mais sobre a violenta política dos nossos tempos do que sobre as razões da poesia que levam adiante aquela que cria. Aqueles que miram os trabalhos mais antigos de Marcia, no entanto, podem notar que há um elíptico retorno da síntese cromática: bastam o preto e o branco. No ano de 2022, somos ainda os mesmos e, sobreviventes, já outros: uma crisesanitária extravasou não apenas limites geográficos, mas também fronteiras interpessoais.Em texto sobre os procedimentos pictóricos presentes nas pinturas de Marcia Ribeiro, o artista Fabio Morais usa um léxico geológico que ilumina o que há de topológico nas telas: superfícies, crostas, relevos, camadas e erupções. Ressalta o que já deveríamos saber: aquilo que vemos não é realidade, é indício. Tal afirmação ganha eco nas palavras de outro texto, da crítica e curadora Clarissa Diniz, sobre o trabalho da artista, a instalação “Um pouco do nada”, uma alegoria dos elementos que compõem o corpo de todo e qualquer ser humano que habita este planeta: dentro de vasos, tubos e outros recipientes de vidro que guardam as substâncias químicas que nos conformam: oxigênio, carbono, cálcio, potássio, hidrogênio, cloro, enxofre, sódio, dentre outros. Na percepção de Clarissa, trata-se de um corpo “em tudo fugidio, evanescente e, por isso, infinito.” Em ebulição, condensação e sublimação, “Um pouco do nada”, uma instalação, relembra-nos que a representação não é o bastante, rememora daquilo que escapa. Não contente com tanto, o corpo que se debruçava sobre a instalação encontrava, também no formato de uma elipse, um espelho: um portal, uma fenda, um abismo.Em “Elipse, Eclipse, Apocalipse” Marcia insiste na percepção. Provoca o encontro de seus trabalhos com aqueles que vêm até o planetário para, por meio de seus corpos, ter uma noção ampliada do universo onde vivemos – e morreremos. Da ciência à religião, da família ao estado, da psicologia à ecologia, vimos no século XX estruturas desmoronarem-se sem o estabelecimento de um nova ordem, como anuncia o catálogo da mostra “Light & Space”, apresentada no Whitney Museum, em 1980, do artista James Turrell, outro amante da percepção . No texto de Melinda Wortz, somos levados a entender a natureza da existência como efêmera – em relação aos tempos, ao lugares e às mentalidades – num processo contínuo de intercâmbio entre o que podemos chamar matéria e energia, forma e vazio ou, em última instância, observador e observado. Quiçá obra e espectador. Um fenômeno observado pelo físico Bernardo d'Espagnat é ressaltado neste catálogo, que assim como as rasuras de Marcia ou a ocupação do planetário, borra fronteiras entre os campos de conhecimento: a atitude da experiência influencia não apenas o resultado do experimento, mas também, em alguns casos, o comportamento físico das próprias partículas envolvidas. A autora ainda alerta que em outros círculos essas ocorrências já tinham sido identificadas, chamadas de parapsicológicas, por aqueles que julgam tudo saber – ou entender, como no título deste ensaio. Na recombinação das palavras, salta milênios: divide conosco que durante séculos os hindus se referiram à essência de nossas vidas e do mundo físico como maya (ilusão), apontando para as condições efêmeras ou não fixas de existência. Com admirável concisão, relembra o Sutra do Coração budista, como expressa a troca simultânea que a tudo constitui: "Forma é vazio, vazio é forma." Insistente na palavra, amante das imagens, maravilhado pela experiência, como quem busca a inspiração do espírito, resta-me, com a certeza de não saber, fazer minhas as palavras de Olavo Bilac em seu poema Via Láctea, que responde àqueles que dizem ouvir as estrelas: “Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

A BIT OF NOTHING

by Clarissa Diniz

"When Marcia Ribeiro presented her paintings to her classmates and teachers - including me - from the Art Conversations course at the Escola de Artes Visuais do Parque Lage, part of her account revolved around the exercise of producing dust. Not a nonspecific kind of dust derived from the unknown and perhaps millennial historical processes, but dust intentionally and contemporaneously created: pictorial dust. Fascinated by the Universe, the artist seems to experience the cosmic formation in her painting through an almost archaeological gesture: scraping and subtracting the most recent layers of paint, Marcia brings to light the whites that were hidden underneath, illuminating the surface and generating a kind of pictorial dust that becomes one of the central elements of the images that emerge.
Not only do cosmic representations appear through the dust, but a cosmological painting itself is created – a creation system that repeats in its terms the already established modes of the emergence of things. If, on the one hand, Marcia Ribeiro’s images clearly allude to elements and movement (stars, lights, paths, planets, systems, nights, explosions) that make up our very plural imagery of the cosmos, on the other hand, they hide because they choose not to reveal the terms of their formation. In its singular pictorial cosmology, the mysteries of the origins of all we know are reenacted.
In turn, A Bit of Nothing is an eminently analytical method to be experienced: instead of producing fragmented matter - dust - and from it recreating the image of a cosmic unit, in this installation it is the image of an unambiguous corporeality – a human body – that is shredded into a thousand parts that are still duplicated by the mirrored pitch darkness of its surroundings. Composed of hundreds of small vases, tubes and other glass containers that hold the chemicals that make up our bodies (oxygen, carbon, calcium, potassium, hydrogen, chlorine, sulfur, sodium, among others), the installation sculpts a body in the air that is in everything elusive, evanescent and therefore infinite. In this kind of representation, Marcia Ribeiro does not create, as she does in her paintings, only the image of a body in a constant movement of boiling, condensation, and sublimation. A Bit of Nothing is fundamentally a small allegory about life and its cosmologies."

IN BETWEEN

by Fabio Morais

"Marcia's pictorial practice begins as Earth - matter, canvas, paint, surfaces, layers, reliefs, eruptions, geology, scraping, excavations, wear, and archeology - and becomes Cosmos - light, explosion, color, and cosmology. The artist builds a historical past by overlaying coats of paint and then scraping and excavating them layer upon layer as if in an archaeological dig, to reveal the physical memory of the painting itself like one does when dating soil. The technique highlights pictorial layers, accentuates the relief of the canvas, and releases eruptions of light and color that result in a visual vocabulary of cosmic movements and explosions. The geological construction and the archaeological action that follow paradoxically reveal a cosmos.
Even if seen as representation, it would be reductionist to limit Marcia Ribeiro’s paintings to visual aspects alone. Her work is the result of actions that are indicial and impasto on canvas as a field of work. The artist does not paint landscapes but instead overlaps layers of paint that make up a pictorial relief landscape that is later eroded to release color and light. It is as if the forces that move the Universe’s matter were tapered into the human scale of art and acted upon the materiality of the pictorial field the same way they work on the cosmic scale. If the human body is one of the forces driven by the Big Bang as Western science declares, then the same original drive that blows up Supernovas and congregates planetary matter seems to drive Marcia Ribeiro to create and manipulate universes inside the cosmogonic perimeter of the canvas.”

ARROBOBOI

by Rodrigo Garcia Dutra

"Marcia Ribeiro paints since 2001 and recently is exposing her artworks to a broader public. The name and work of Hilma af Klint came to my mind in our conversations either for the pictorial language relating to both artists and the secrecy involving the production of their work. This introduction created diverse parallels between their practice establishing a fluid network of knowledge that involved Anthroposophy as the educational (Waldorf Schools), therapeutic, and creative system established by Rudolf Steiner merging with sunsets and sky colors at Ipanema, Copacabana and Bahia Beaches. In “Ascensão (Ascension), 2016” there’s an eerie presence of white glowing bubbles made of her scratching of pigment on canvas over a dark blue background suggesting vaporized molecules of water bursting from the earth ground into the open universe. Then horizontal color lines construct a gradation between orange, red and yellow which can be minimalistic representation of the cores of our planet. It’s an extremely physical subject that leds to the existence of an objective, intellectually and comprehensible spiritual world. The same patterns of circular ghostly scratches of pigment appear again in “Fluxo 1 (Flow 1), 2015” constructing an open membrane that shows a reality behind a greenish sea with an otherworldly hole in it and a pink sky. It’s an ode to water cycles that involves how water evaporates from the surface of the earth, rises into the atmosphere, cools and condenses into rain or snow in clouds, and falls again to the surface as precipitation."

FIXED ONLY TO THE NAIL WALL

by Clarissa Diniz

'Cosmic formation, where even dust is not surplus, is performed in the painting of Marcia Ribeiro. Her constitution takes place as an archaeological gesture: scraping and subtracting the latest layers of painting, the artist brings to light the whites behind her, illuminating the surface and generating a pictorial dust that becomes one of the central elements of the images that They emerge. Thus there is not a representation of cosmic elements, but a cosmological experience itself - a system of creation which, in its own terms, repeats the already established modes of the
emergence of things, and especially of painting.'

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