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AMAR PARA ENTENDER

por Ulisses Carrilho

No dia 29 de maio de 1919, o céu amanheceu nublado sobre a cidade cearense de Sobral, 240 quilômetros distante de Fortaleza: "A população estacionou nas praças públicas, impressionada com o surpreendente espetáculo que a natureza lhe oferecia. Parecia que a aurora ia romper e, naquela escuridão, os galos cantavam e as avezinhas procuravam agasalho." Assim o jornal Folha do Littoral descreveu o momento em que a população de Sobral, no interior do Ceará, presenciou um eclipse total do Sol em 1919. Tivesse o Sol permanecido encoberto, todo o esforço da comitiva de astrônomos ingleses teria sido em vão, como em 1912. Perderiam o eclipse total e a chance de provar, pela primeira vez, se a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein, estava correta. Publicada em 1916, a teoria de havia levado oito anos para ficar pronta: foi o tempo que Einstein levou para generalizar os postulados da relatividade especial, de 1905, e incluir a gravidade na teoria. O segredo estava em fotografar essas estrelas – em última instância, produzir uma imagem, procedimento comum aos artistas visuais – durante o eclipse e, um tempo depois, fotografá-las novamente quando estivessem na mesma região do céu, mas sem a mesma interferência do Sol. Pouco antes das 9h da manhã, uma oportuna brecha entre as nuvens revelou a todos o momento em que o disco solar foi obscurecido pela Lua. Sobralenses amedrontados buscaram refúgio na igrejinha temendo o Juízo Final; conta-se que os galos ao redor, confusos, cantaram pensando que já era noite; enquanto isso, os cientistas extraiam o máximo de resultados dos instrumentos de alta precisão cuidadosamente montados em um laboratório improvisado. Cinco minutos e treze segundos mais tarde, o Sol voltou a brilhar.

Este ensaio, muito embora leve o verbo entender em seu título, não está preocupado em facilitar o processo de compreensão dos trabalhos que compõem o corpo da obra de Marcia Ribeiro, que baila entre a pintura, o desenho e a instalação. Muito antes pelo contrário: trata-se de especular razões possíveis pelas quais a artista, que não costuma operar por meio da linguagem escrita na sua produção artística, elegeu três substantivos para neste espaço-tempo emprestar um nome tripartido ao conjunto de trabalhos apresentados. Uma forma, a elipse, metaforiza as trajetórias realizadas em vários sistemas físicos naturais que possuem um centro de força central, como a Terra e demais planetas em torno do Sol; um evento astronômico – eclipse; uma alusão ao juízo final – apocalipse. Palavras não dão conta da intensidade de tudo aquilo que é sentido pelo corpo, mas poetas, oráculos, xamãs e demais forças desconhecidas que operam neste mundo nos ensinam que ainda assim podemos tentar.

 

Dentre as figuras de linguagem da língua portuguesa, é a elipse que opera omitindo um termo de determinado enunciado. Uma subtração: operação que confia na síntese, no apagamento. Nas pinturas realizadas por Marcia, frente à pincelada, a rasura apresenta-se como importante coadjuvante. Se a história da arte insiste em categorizar as pinturas, figurativas ou abstratas, relembrando-nos que se trata de acúmulo de tinta sobre tela, artistas interessados em agir desde este meio dificultam tais determinismos ao operar criticamente sobre a tradição. O repetido aforismo do pintor e professor de pintura Maurice Denis (1870 - 1943) anuncia que “é preciso lembrar que um quadro, antes de ser um cavalo de batalha, uma mulher nua ou uma anedota qualquer, é essencialmente uma superfície plana recoberta de cores reunidas numa certa ordem”. Em Marcia Ribeiro, por meio da raspagem, da retirada das camadas de tinta sobre a tela, somos nós, espectadores, públicos, videntes, convocados à arqueologia da própria pintura para lhe carregar sentido. Por meio da retirada de camadas de tinta, percebemos um passado que se faz presente, cuja totalidade nos escapa – como a própria vida. No entanto, sabendo que toda palavra é um código prestes a receber novos sentidos, podemos também perceber que a primeira dessas palavras é justamente aquela que dá nome a uma forma, a elipse. Mas também ao movimento da trajetória de um ponto – como toda e qualquer linha já produzida, por artistas ou não, e descrita pela física. Elipse abundam nos movimentos que regem o Espaço e, não à toa, regem a organização do tempo. É a duração do movimento da Terra em torno do Sol, elíptico, que marca aquilo que denominamos ano. Em tinta acrílica, guache, bastão oleoso ou lidando diretamente com pigmentos, percebemos um corpo de trabalhos que ora parecem ser um gozo liberado de experimentação da forma, ora parecem ter o ímpeto de revelar o que a ciência ainda não conseguiu desvelar. Como espécies de mirações ou visões alucinógenas, percebemos uma psicodelia da forma que não obedece à rigidez dos projetos concretos e neoconcretos, tão importantes para a arte brasileira, mas ainda assim percebemos uma vontade geométrica nas composições estruturadas pela artista. Ao mirar suas pinturas, reconhecemos enigmas que demandam tempo do espectador: desobedecem à rapidez da ordem do dia, parecem esgarçar o tempo, convidar a uma vagareza. Tal demora, própria da reflexão, poderia levar-nos a viajar no tempo e especular um regime de concomitâncias, de associações livres de respaldo ou fixidez: em Hilma af Klint (1862-1944), pintora sueca que experimentou o abstracionismo antes mesmo de Kandinsky ou Mondrian, também percebemos uma representação física, em tela, daquilo que não visível. A tinta relembra que a matéria, por meio do gesto, não opera apenas naquilo que é concreto ou apreensível, por meio do que já foi elucidado. Ganha um quê espiritual – própria não apenas dos alfarrábios da história da arte, mas também possível de ser pareada à arte contemporânea brasileira produzida por artistas indígenas, como as pinturas de Daiara Tukano, que operam nesta tradição que expande as possibilidades da arte.

 

Ao sobrepor camadas de tinta e formas que equilibram-se e irrompem nas pinturas retangulares produzidas pela artista, poderíamos perceber uma alusão ao eclipse. Tal evento astronômico agora servirá para aludir às várias camadas do tempo: por quais motivos, desde a Terra, a artista aludiria ao movimento de corpos celestes e galáxias outras? Sem termos algum tipo de certeza sobre esta resposta – talvez nem a própria artista as tenha ou prefira guardar em segredo, como o mistério religioso – cabe ao crítico que recusa-se a entender mais uma vez imaginar. Sob a rígida Ditadura Militar (1964-1985), brasileiros assistiram, em 1969, à chegada de seres humanos à Lua, em pleno AI-5, que institucionalizou a perseguição política aos seus opositores e autorizou uma série de medidas de exceção. Entre elas, o fechamento do Congresso Nacional, a intervenção em estados e municípios e a suspensão de direitos políticos de qualquer cidadão. Frente à rigidez da norma, cabe ao artista ainda assim criar.

 

Foi no ano de 1970 que a artista brasileira Anna Bella Geiger desenvolveu as primeiras serigrafias da sua Fase Lunar, a partir do cruzamento das técnicas de serigrafia em cor e fotosserigrafia, a partir de imagens conseguidas pessoalmente pela artista na Embaixada Americana. A potência destas imagens acompanhou a investigação artística de Geiger. Percebemos além da superfície lunar, outras imagens produzidas pela Nasa. Na folha de contato, as fotos rejeitadas para futura ampliação ganhavam um xis – também uma rasura – e provocaram a inclusão de tal código em trabalhos dos próximos anos, como em “Aqui é o centro”, de 1973. Em sua produção artística, repleta de mapas e representações de geografias físicas e humanas, a artista mira a imensidão do céu.

 

Fazer do impalpável, do inimaginável e do impossível o seu chão, operação que confia na opacidade da arte, para aquela que, sem garantia de sua liberdade de expressão, insiste em criar. Garantida pela Constituição, a liberdade de expressão está ligada ao direito de manifestação do pensamento, possibilidade do indivíduo emitir suas opiniões e idéias o expressar atividades intelectuais, artísticas e científicas, sem interferência ou retaliação do governo. Tal fantasma histórico, todavia, mostra-nos que mesmo para aqueles que confiam na linearidade do tempo, o passado insiste em se fazer presente. Mirar aquilo que paira sobre nós renova suas possibilidades políticas quando, na atualidade, o governante do país discursa sem máscara em ato pró-intervenção militar em frente ao quartel general de Brasília, em meio à aglomeração que clamava pela volta do mesmo Ato Institucional durante a maior crise pandêmica do planeta. Se confiamos que as palavras carregam consigo mais de um sentido, não poderíamos deixar de desconfiar na potência política das imagens.

 

Chegamos ao apocalipse anunciado pelo terceiro termo eleito por Marcia Ribeiro. São também três as bandeiras hasteadas pela artista para os visitante do Parque do Carmo. Em tempos de incerteza, os mastros anunciam que é preciso reinventar códigos e operar por meio dos símbolos. A ocupação “Elipse, Eclipse, Apocalipse” desfraldará três bandeiras com as palavras “Galáxia’, “Universo” e “Planeta”. A substituição operada pela artista, da ordem conceitual, por si já poderia fazer rima ao título do paradigmático “Anywhere is My Land”, pintura de Antonio Dias, produzida no ferrenho ano de 1968. Ao salpicar tinta branca sobre a superfície de uma tela pintada de preto, o artista produziu uma miríade de pontos desordenados, sem tamanho uniforme. Sobrepõe a esta desritmada composição uma malha, também em tinta branca, que organiza a superfície da tela como as malhas que aferem a escala em mapas geográficos. Apesar de trabalhar por meio da pintura, da serigrafia e da instalação, a citação direta ao trabalho de Dias retoma uma operação conceitual de uma artista que parece querer estar impregnada ao seu tempo, muito embora não esteja usando de códigos que manifestamente a liguem ao espaço. Tal energia subversiva parece mais uma vez aludir à temperatura febril de um Brasil ferido. Tal escrutínio das imagens, palavras, símbolos e códigos presentes nesta mostra, no entanto, podem dizer mais sobre a violenta política dos nossos tempos do que sobre as razões da poesia que levam adiante aquela que cria. Aqueles que miram os trabalhos mais antigos de Marcia, no entanto, podem notar que há um elíptico retorno da síntese

cromática: bastam o preto e o branco. No ano de 2022, somos ainda os mesmos e, sobreviventes, já outros: uma

crise sanitária extravasou não apenas limites geográficos, mas também fronteiras interpessoais.

 

Em texto sobre os procedimentos pictóricos presentes nas pinturas de Marcia Ribeiro, o artista Fabio Morais usa um léxico geológico que ilumina o que há de topológico nas telas: superfícies, crostas, relevos, camadas e erupções. Ressalta o que já deveríamos saber:aquilo que vemos não é realidade, é indício. Tal afirmação ganha eco nas palavras de outro texto, da crítica e curadora Clarissa Diniz, sobre o trabalho da artista, a instalação “Um pouco do nada”, uma alegoria dos elementos que compõem o corpo de todo e qualquer ser humano que habita este planeta: dentro de vasos, tubos e outros recipientes de vidro que guardam as substâncias químicas que nos conformam: oxigênio, carbono, cálcio, potássio, hidrogênio, cloro, enxofre, sódio, dentre outros. Na percepção de Clarissa, trata-se de um corpo “em tudo fugidio, evanescente e, por isso, infinito.” Em ebulição, condensação e sublimação, “Um pouco do nada”, uma instalação, relembra-nos que a representação não é o bastante, rememora daquilo que escapa. Não contente com tanto, o corpo que se debruçava sobre a instalação encontrava, também no formato de uma elipse, um espelho: um portal, uma fenda, um abismo.

 

Em “Elipse, Eclipse, Apocalipse” Marcia insiste na percepção. Provoca o encontro de seus trabalhos com aqueles que vêm até o planetário para, por meio de seus corpos, ter uma noção ampliada do universo onde vivemos – e morreremos. Da ciência à religião, da família ao estado, da psicologia à ecologia, vimos no século XX estruturas desmoronarem-se sem o estabelecimento de um nova ordem, como anuncia o catálogo da mostra “Light & Space”, apresentada no Whitney Museum, em 1980, do artista James Turrell, outro amante da percepção . No texto de Melinda Wortz, somos levados a entender a natureza da existência como efêmera – em relação aos tempos, aos lugares e às mentalidades – num processo contínuo de intercâmbio entre o que podemos chamar matéria e energia, forma e vazio ou, em última instância, observador e observado. Quiçá obra e espectador. Um fenômeno observado pelo físico Bernardo d'Espagnat é ressaltado neste catálogo, que assim como as rasuras de Marcia ou a ocupação do planetário, borra fronteiras entre os campos de conhecimento: a atitude da experiência influencia não apenas o resultado do experimento, mas também, em alguns casos, o comportamento físico das próprias partículas envolvidas. A autora ainda alerta que em outros círculos essas ocorrências já tinham sido identificadas, chamadas de parapsicológicas, por aqueles que julgam tudo saber – ou entender, como no título deste ensaio. Na recombinação das palavras, salta milênios: divide conosco que durante séculos os hindus se referiram à essência de nossas vidas e do mundo físico como maya (ilusão), apontando para as condições efêmeras ou não fixas de existência. Com admirável concisão, relembra o Sutra do Coração budista, como expressa a troca simultânea que a tudo constitui: "Forma é vazio, vazio é forma." Insistente na palavra, amante das imagens, maravilhado pela experiência, como quem busca a inspiração do espírito, resta-me, com a certeza de não saber, fazer minhas as palavras de Olavo Bilac em seu poema Via Láctea, que responde àqueles que dizem ouvir as estrelas: “Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

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